quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Ensino da cultura africana e afro-brasileira nas escolas ainda encontra resistências
CARLOS ANDREI SIQUARA
Em prol da igualdade
Se há quase uma década o ensino da história e da cultura afro-brasileira ocupa um espaço a ser respeitado no currículo das escolas, isso se deve à luta do movimento negro que vem defendendo a inclusão de temas caros ao reconhecimento da população negra como um dos pilares fundamentais para a formação do Brasil. Impulsionado pela Lei 10.639, que, a partir de 2003, não só tornou obrigatória a presença desse conteúdo em todas as instituições de ensino, como fixou a permanência da comemoração do Dia Nacional da Consciência Negra no calendário escolar, tal iniciativa, embora represente conquistas e avanços, ainda esbarra em obstáculos após dez anos.
Emperram o processo diversos fatores. Dentre os principais, professores e especialistas destacam o mito da democracia racial que ainda reverbera em muitos discursos; o preconceito institucionalizado; as lacunas na formação dos educadores e a intolerância religiosa. O último ganhou projeção recentemente com o depoimento do professor Joilton Lemos, publicado em sua página pessoal do Facebook no dia 21 de novembro, em plena semana de atividades em torno do Dia Nacional da Consciência Negra, celebrado em 20 de novembro, data da morte de Zumbi, líder do quilombo dos Palmares.



Replicado na rede social, o relato de Lemos trouxe a público um problema que tem se mostrado comum no ambiente escolar. Em razão de perspectivas deturpadas por motivos religiosos, repertórios das culturas populares ligadas à tradição negra têm encontrado resistências de pais, profissionais e até alunos.

No caso desse professor, que trabalha em um colégio do Rio de Janeiro, cartazes com desenhos de divindades da mitologia de matriz africana, produzidos por estudantes de sua disciplina, foram privados de exposição com a justificativa de amenizar problemas com os pais evangélicos, como foi apontado pela diretoria. Por esse motivo, Lemos reforçou em seu depoimento que lidar com o assunto na sala de aula responde a uma das diretrizes da lei, que, alterada em 2008, também passou a incluir além do ensino de história e cultura afro-brasileira aquelas de origem indígena.

“Hoje (21/11) sofri uma das maiores decepções de minha vida. Além de lutar contra o preconceito e o racismo fora da escola, tenho também que ter força para enfrentar o que há dentro da instituição que deveria, antes de tudo, respeitar a diversidade cultural existente em nosso país. E tem mais: a escola já está toda enfeitada para o Natal (nada contra!), Jesus já está na manjedoura, junto com seus pais... E os Orixás... presos dentro do armário. Será mesmo que a escravidão já acabou?”, questionou Lemos por meio de publicação na rede social.

Discriminação. O fato que provocou indignação no educador coloca, assim, em discussão, questões que se voltam para a percepção do lugar de exclusão ao qual foi relegada a cultura e as expressões religiosas cultivadas aqui pela população de origem africana desde as primeiras diásporas. De acordo com Patrícia Santana, ex-diretora da Escola Municipal Florestan Fernandes, de Belo Horizonte, e vice-coordenadora do Fórum Permanente de Educação e Diversidade Étnico-Racial de Minas Gerais, diante desse contexto trabalhar com a cultura afro-brasileira nas instituições de ensino tem exigido atenção constante. “Essa questão talvez seja um dos maiores desafios para alguém que apresenta a cultura afro-brasileira nas escolas hoje, porque em algum momento vai passar pela religião afro-brasileira. Uma coisa não é indissociável da outra. Se você tira uma parte, vai perder muito em conteúdo”, revela Patrícia Santana.

Ela observa que em torno disso há uma mescla de preconceito e hipocrisia, pois a mesma reação não se percebe quando se fala, por exemplo, sobre mitologia grega. “Quando se estuda personagens como Zeus, entre outros deuses gregos, narrando suas histórias, todo mundo acha lindo e maravilhoso. Mas quando se chega na mitologia africana alguns logo acham que é coisa do demônio, macumba, por ignorância, e isso atrapalha muito”, acrescenta.



Coordenador do programa de ações afirmativas da UFMG, o professor Rodrigo Ednilson de Jesus concorda que a tensão provocada por essa interface religiosa é hoje um dos grandes problemas para a implementação desses cursos. “Muitas vezes os traços religiosos presentes na cultura africana e afro-brasileira são relacionados ao culto do Mal e isso impede, por exemplo, que as pessoas enxerguem melhor algumas manifestações culturais, como as danças afro. A dificuldade de se entender isso se deve muito à satanização dos povos africanos e afro-brasileiros”, afirma Jesus, que em 2009 participou de uma pesquisa sobre os desdobramentos da lei em várias escolas do país.

“Nós percebemos isso não só nos espaços onde convivemos, mas também tomamos conhecimento dessa questão por meio dos relatos de estudantes nossos que estão fazendo estágios. Essa satanização que algumas religiões fazem da cultura negra é bastante prejudicial para entendermos a própria diversidade brasileira”, ressalta ele.

Quanto a essa situação, Patrícia Santana acredita que falta também um posicionamento mais contundente dos governos. “Eles acabam ficando reféns das bancadas evangélicas e não bancam essa discussão, como notamos também com a questão da homofobia. O que foi feito com o kit para se discutir esse outro tema? Foi barrado. É urgente um debate maior sobre esse contexto”, reforça a professora, que observa a necessidade também se discutir melhor a natureza do Estado laico.

Laicidade. A professora emérita da Universidade Federal de São Carlos, Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, que em 2003 representava o movimento negro na Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação, reforça a importância da laicidade como instrumento necessário para defender os espaços públicos da intolerância religiosa.

“Se não cabem ali imagens de Orixás, também não cabem imagens de santos, crucifixos, orações, sejam elas de igrejas católicas ou evangélicas. Uma vez visitei uma escola, e as crianças cantavam cantos evangélicos porque a professora era dessa igreja. Então, algumas manifestações têm o privilégio de serem manifestadas? Ou se permite que existam toda ou nenhuma”, explica Petronilha.

“É um direito dos brasileiros conhecer de tudo, valorizar e respeitar as diversas manifestações culturais e religiosas. O fato de não haver símbolo de espécie alguma nas instituições públicas visa justamente resguardar esse princípio”, diz.

Apesar de reconhecer essa complexidade, ela comenta que isso não deve inibir a ação dos professores e frisa isso recordando sua própria experiência como educadora e diretora de escola. “Um dos projetos de maior sucesso no ano passado foi uma semana de literatura que realizamos na Escola Municipal Florestan Fernandes. Tinha músicas, capoeiras, entre outras expressões da cultura afro-brasileira, e não houve quem reclamasse que o filho não participaria do evento”, afirma ela.

“Ao contrário, as mães ficaram emocionadas, havia representações de Iemanjá, elogiaram o trabalho e disseram que aquilo não podia acabar. É necessário fazer esse diálogo, enfrentar a situação e abraçar a proposta que não pode ser realizada como uma iniciativa isolada, mas como algo fruto de um esforço coletivo. Se alguém reclamar de alguma coisa, é só mostrar a lei. Há também uma falta de preparo que se mostra nessa dificuldade de argumentar com quem quer que seja quando necessário”, diz Santana.


Mais informações: http://www.acordacultura.org.br/artigos/16122013/ensino-da-cultura-africana-e-afro-brasileira-nas-escolas-ainda-encontra-resistencias


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